6.12.12



Não comas as bagas, não bebas a água, não mexas  nas pedras, não olhes os pássaros, não cheires as flores, não mordas os troncos, não rasgues a pele da mão num ponta afiada.

O punhal que trouxeste não te cabe no bolso. Senta-te e espera. Ele há-de sair lentamente por vontade própria.
Ensaia algumas notas agudas. Ensaia com precisão as três notas que te acompanharão para sempre. Quando o teu fôlego se esgotar, e com ele o suor do teu rosto, espera mais um pouco. Ainda te restarão alguns segundos de vida.

14.11.12

I
A floresta tem, como a praia tem e o planalto tem e a lua tem, uma luz obscena.
A floresta tem mais verde que vermelho, mais castanho que preto, mais amarelo que laranja.
A floresta guarda relíquias e transforma-as e de novo. Como uma fábrica que não quer vender nada.
Os sons que ouvires na floresta nunca te serão dirigidos. Nunca será para ti a floresta.
Os gritos que ouvires na floresta perder-se-ão dentro da tua cabeça. E de dentro dela se soltarão.

A floresta alimenta-se de ti.

A floresta passeia-se em ti.


II
Tu sabes que este lugar é uma casa imensa. E que os quartos e as salas se multiplicam e que todos os cantos se abrem. Tu sabes que tua cama de casal, que a folhas amaciaram com o tempo, vai desfazer-se um dia. Tu não abras a porta que ainda entra uma raposa. Tu não abras a porta que ainda entra um veado.

III
Passas o carvão na cara. E acreditas que podes encontrar ouro. O ouro não te serve de nada. Já não se fazem anéis.



1.11.12

Eu vou a Niterói enterrar os meus amantes. Vou lavar-lhes os corpos na baía e envolvê-los nas folhas de palmeira perdidas no jardim. Vou perfumá-los com goiaba. Vou arrancar-lhes as roupas com uma faca afiada. Vou empurrá-los para a garagem. Vou levá-los na van. Vou empilhá-lhos com a ajuda dos macacos. Eu vou a Ipanema matar os meus amantes.
Eu já me esqueci do início desta avenida. De tão longa, de tão quente. Os meus pés só me doem porque me lembro de ti. Não é do caminho. É uma dor como no peito. Não lhe vejo o fim, não lhe vejo o propósito. Se tu puderes encontra-te comigo na igreja onde mataram as crianças a noite passada. Vamos fazer uma promessa e esquecer que levámos anos a aqui chegar.

26.9.12

Eu não fui aquele homem que foi rapaz de barba e mãos finas. Eu não fui aquele homem sensível, tão masculino, tão feminino. Não toquei guitarra, nem cantei com o cigarro no canto da boca. Não cruzei a perna com ironia, não passei os olhos pela sala. Eu fui outra coisa mais difícil de se ser.


24.9.12

Eu não podia casar-me já e atirar as flores e esquecer-me da falta que me fizeste. Eu não podia casar-me já e esquecer-me que morri nos teus braços a quilómetros de distância. O meu enterro não podia transformar-se numa cerimónia linda e pura. E só o meu enterro duraria para sempre. O matrimónio não atravessa o tempo porque não se nos cola à pele.
Naquele verão, naquele inverno, neste verão, neste inverno não houve flores.
Todos os noivos que vi estavam invariavelmente mais felizes que nós, mesmo sem flores.
Eu não podia casar-me já sozinho, sozinho.
Eu atravessei o tempo contigo colado à minha pele. Solteiro.

21.8.12

Todas as jóias vieram parar às tuas mãos. Como pequenos pecados, como pequenas confirmações do sangue que do sangue passar se tornou mais azul. De tanta educação. As tuas mãos cheias vieram contra a minha cara, encontrar um estalo que nunca cicatrizou. Para mim já chegava olhar-te. Mas assim foi mais pesado, foi um olhar demorado e brilhante. Entre as raridades de outras famílias, encontrei as jóias dos nossos filhos.

13.8.12

Quando perceberes, naquele instante execrável, que vou morrer, olha-me nos olhos cansados. Deixa-te ficar como paisagem. O mar dos teus olhos há-de me encher de anos de vida.  E este medo há-de desaparecer.
Quando perceberes que é o meu fim a chegar devolve-me a expressão melancólica que, em ti, sempre me excita de tão improvável. E esse plano apertado da tua cara - imagino se os teus lábios rosa se transformarão com os anos - será só meu. E nunca mais meu.

8.8.12

Se te esqueceres de tudo e assim conseguires esqueceres-te mais. Encorajo-te. Encorajo-te, meu amor. a partires a partir do fim. E se assim, se assim for mais fácil para ti, não encontro razão para não. Me esqueceres de tudo e para sempre. Só assim, se assim for. Manhunt, manhunt, diz-me se há alguém mais triste do que.

1.7.12

Sim, os anos passsaram. E os teus olhos ficaram virados na direcção errada. Para a frente é aqui. Mas aqui não se desdobra noutros lugares. Aqui é a saída do labirinto que não te entretém. Os teus pulmões ainda têm o ar que guardaste com responsabilidade. E tu, tão ecológico, não soubeste desesperar.
Respira fundo e diz superficialidades, por favor. É agora.
Vão-te esquecer, vais-te esquecer das conversas que te mudaram a vida e tu não reparaste. Repara agora.

21.6.12

Lembrar-te até à exaustão é o meu plano para hoje. Resgatar com precisão médica os detalhes da tua má educação. E as tuas coxas em constante tensão. E a tua boca cor de rosa a dizer coisas irrepetíveis.Até adormecer não haverá mais nada minha cabeça do que a tua cabeça a lutar contra a minha falta de nexo.E quando for claro para mim, quando estiveres quase aqui, quando já formos os dois a dormir lado a lado há-de ser dia. E o café platónico saberá a carne e o pão plátónico saberá aos cigarros que entretanto fumei.



19.5.12

Eu vi o teu fantasma sair de casa e correr para o jardim. Da janela do segundo andar percebe-se bem o desenho do teu fantasma pelo espaço. E as pausas para chorar.
Acordei com o odor do nevoeiro.
Eu vi uma coisa branca pelo jardim. Aos saltinhos. A olhar para trás num tempo irregular como se estivesse a fugir de alguém e depois a parar chorar numa tensão vertical nada fantasmagórica.
A minha camisa de dormir ficou presa na janela quando a abri.
Eu vi-te nu aproximares-te do teu fantasma. E por todo o tempo em que percorreste o jardim de costas para a casa imaginei que estivesses melancólico. Um passeio às seis da manhã não é assim tão invulgar.
Quando te viraste num erecção de séculos, percebi.
E o meu fantasma amparou-me a queda.

14.5.12

Tu não ficaste a olhar para mim. Não me pediste permissão. Atiraste-te para a frente, oh meu deus. Tu não ficaste a deixar-me ajudar-te. E, pois, eu não fiz nada. Nem chorei no teu caixão.

16.4.12

Eu procurei, senhor, agradar-lhe com trejeitos de princesa. Mas o meu sorriso foi demasiado pesado, aceito a crítica. E quando me calei, calei-me em demasia, eu sei senhor. Tenho que aprender a calar-me na medida certa. Eu procurei, senhor, agradar-lhe com o meu cheiro. Mas eu percebo que o tenha ofendido com tanta doçura. Um grande fedor. As minhas lições de violino têm corrido surpreendentemente bem. Espero poder presenteá-lo com uma peça barroca em breve. E em relação às pernas e às axilas, peço-lhe alguma compreensão.
Não entendo por que não trouxeste a orquídea para a casa nova. Se trouxeste tudo. Os quadros do Picasso a fingir que Picasso, os sofás dos anos 60 a fingir que anos 60, os meus presentes de aniversário a fingir que aniversário. Não entendo porque não trouxeste a orquídea a fingir que flores, que flores, que flores.

15.4.12

Não me apetecia ficar mais no ocidente. Atravessei a rua. Encantei-me. A, a-a, aaaa, ó, a-a, aaa. Eu podia agarrar em ti e levar-te num avião para Paris, mas estamos tão bem na praia a ver os helicópteros passar. Os mortos ainda mal morreram.

23.3.12

Tu querias ser um rapaz norueguês. Eu queria ser uma menina alemã. Tu querias tocar violino. Eu queria uma vestido preto. Tu querias uma franja loura. Eu queria falar inglês. Tu querias chá. Eu queria uma guerra. Tu querias tudo em cinzento. Eu queria tudo à minha volta. Tu querias passear em Portugal. Eu queria apaixonar-me por ti. Tu querias que a raça. Eu queria que a raça. Tu querias o multiculturalismo. Eu queria outra guerra. Tu querias dentes brancos. Eu queria cuspir para o chão. Tu querias um café. Eu queria atrasar-me. Tu querias antecipar-me. Eu queria ser um rapaz norueguês. Tu querias ser uma menina alemã. E vencer o Festival da Eurovisão.
Eu disse alibaba, alibaba. Mil e uma coisas sábias, tu foste o homem das arábias. Eu disse anda, anda. Que se faz tarde. Que se foda. Amanhã acordo cedo. Eu disse alibaba. Mil e uma coisas sábias, tu foste o homem das arábias.

4.3.12

Eu não encontrei poetas nos sites de pornografia. Procurei, procurei. E continuo sem perceber onde vão os poetas quando não têm calças, nem camisas, nem meias, nem cuecas. Para minha surpresa, também os textos acusaram essa ausência.
Eu não sei nada sobre a guerra que se tem feito. Não conheço os mortos, não entendo as razões dos vivos. E cada vez que vejo o carimbo do seu país no meu passaporte, reconheço a minha ignorância. É porque o amo, senhor? É porque o amo que fecho os olhos às atrocidades que se têm visto a dois passos da sua porta? Eu já não lamento nada, para além do atraso nos aviões que me levam até aí. E somente a música, nessa língua exótica, em que os erres são mais ricos que os erres mais ricos da minha língua, somente a música me comove.
Para minha vergonha. Não me tenho confessado e confesso que não me tem faltado tempo. Não posso, contudo, confessar-me no seu país. Já não há o culto no território, meu senhor. E como isso me deixa triste. Só deus para além da música se manifesta em mim.

28.2.12

Eu espero que não acabe, que nada acabe e que a evolução - se ela exisitu - pare aqui com graça e vigor. E se o nosso beijo se transformar em relíquia de museu, eu não me importo. Só que não acabe. E que se diga sobre ele qualquer coisa de extremamente elevado, mas popular. Que reuna, como as pirâmides, um consenso. Que coisa impressionante. O nosso beijo, que coisa impressionante. Autocarros, máquinas fotográficas. Que disparate.

24.2.12

Vamos ter que conversar sobre a tua melhor amiga. Vamos ter que perceber porque gostas tanto dela. Sobre os teus pais e o teu irmão estou bastante esclarecido. Os passaportes foram uma boa ajuda. Agora, preciso de saber mais sobre essa melhor amiga. Não me digas que te descansa saber que ela está lá, caso eu não esteja. Desculpa a minha honestidade, mas tenho imaginado a tua melhor amiga atirar-se do viaduto, exactamente no mesmo sítio onde me encontraste na terça-feira de carnaval.
Passei a vida a passar a mão com cuidado pelo fecho éclair. Passei a vida a fingir que não se passava nada, que não havia razão para a minha mão solta. Que o meu credo era uma poesia imensa e teimosa como comida entre os dentes. Passei a vida a treinar o meu maxilar no máximo da sua extensão, a treinar a nudez com um golpe de mágico, a treinar esperar-te meio sentado, meio deitado com um cigarro na mão esquerda. E nada demais se passou hoje, se não a nossa conversa monossilábica e alguns smiles de eroticismo duvidoso.

21.2.12

Tu podes guiar o carro com exagerada masculinidade. Eu vou olhar-te as veias tensas e os músculos num esforço suave a segurar o volante. O cotovelo pendurado. E os teus dedos a procurar com precisão e sem medo os botões. Tu podes guiar assim o carro e falar-me com as pestanas a bater a 180km/hora. E o teu blush pode desfazer-se no teu peito como chuva. Podes deixar-me nesta esquina e depois na outra e depois na outra. Tenho saudades das corridas de cavalos, meu amor.
Dezembro ficava bem como nota de rodapé. Nem família, nem dourados, nem neve, nem nada. O meu ano passava melhor, sem o cheiro insuportável dos corpos em decomposição amarrados ao pinheiro. Muito se disse sobre mim, que não estive lá. O meu ano passava melhor a escrever Dezembro com d minúsculo, a evitar esse conforto da nossa casa gelada. Muito se disse sobre mim, que não estive lá. Podiam ter-se rido, no entanto, desta ironia de não ter faltado hoje à festa de carnaval.